A guitarra clássica, como hoje é conhecida, é fruto de um desenvolvimento relativamente recente: o instrumento assumiu a sua forma moderna no final do século XIX, depois de uma evolução centenária, cuja penúltima manifestação remonta a uma guitarra mais pequena, de seis cordas, popular nos salões do século XIX e muito apreciada pelas senhoras da aristocracia. Com o novo instrumento, nasceu um novo repertório, que viria a confirmar a importância da guitarra em recitais. Este álbum o primeiro registo de um concerto de Milo Karadagli revela o aparecimento da guitarra moderna na forte luz de Espanha, o país no qual, mais do que em qualquer outro lugar, a guitarra mantém maior preponderância. Na verdade, é o instrumento nacional espanhol.
O programa começa com aquelas que são, provavelmente, as duas mais populares obras algumas vez escritas para guitarra e orquestra: «Concierto de Aranjuez» (de 1939) e «Fantasía Para Un Gentilhombre» (de 1954), de Joaquín Rodrigo. Mas a história da guitarra no século XX começou muito antes de qualquer uma destas aplaudidas composições. O primeiro grande marco é «Homenaje», de Manuel de Falla, um solo de guitarra escrito, em 1920, para recordar o compositor francês Claude Debussy, que Falla venerava e que morrera dois anos antes. Esta foi a primeira obra assinada para guitarra por um grande compositor e, como tal, surge como o primeiro sinal do renascimento do instrumento. Debussy foi uma fonte de inspiração para Falla, durante os sete anos que este passou em Paris, para onde tinha ido estudar num dos mais criativos cenários do início do século XX. Mestre na atmosfera musical, Manuel de Falla escreveu: «Estou interessado nas relações entre as cores e os sons e muitas ideias de melodias e combinações de harmonias têm sido sugeridas por algum quadro ou velho vitral». A gravidade simples de «Homenaje» disfarça a sua riqueza: muitos anos mais tarde, Benjamin Britten, após uma actuação de Julian Bream, revelou o seu assombro pela quantidade de música contida num espaço tão pequeno.
À semelhança de muitos compositores da mesma época sobretudo Bartók e Kodály, na Hungria, Vaughan Williams e Grainge, no Reino Unido, Canteloube, em França , Manuel de Falla assumiu a música folk como um elemento fundamental na linguagem clássica em que compunha. O seu ballet «El Sombrero de Tres Picos», de 1919, revela uma abundância de gloriosas melodias e emana um verdadeiro espírito espanhol, em parte porque surge desenhado a partir de melodias da Andaluzia. É aí que se pode encontrar «Danza Del Molinero», que toma a forma de uma «farruca», um género flamenco tradicionalmente dançado apenas por homens. Sem surpresa, a transição entre a orquestra e o solo de guitarra surge com grande tranquilidade.
Como Manuel de Falla, também Joaquín Rodrigo viajou até Paris, onde estudou no Conservatório e na Sorbonne. Antes de regressar a Madrid, em 1939, compôs «Concierto de Aranjuez», para o guitarrista espanhol Regino Sáinz de la Maza. Nele, surge explanada a reacção do compositor aos magníficos e atmosféricos jardins do palácio real de Aranjuez: uma pequena cidade, cerca de 50 kms a sul de Madrid, onde tinha passado uma parte da sua lua-de-mel, no início da década de 1930. Talvez tudo se torne ainda mais comovente quando se descobre que Joaquín Rodrigo era cego desde os três anos: os sons e os perfumes deste lugar mágico encontram o reflexo perfeito na música, quer nas brilhantes evoluções exteriores quer no contagiante e meditativo Adagio central (cuja impressionante melodia, ouvida pela primeira vez no concerto em cor anglais, foi, desde então, sabiamente recuperada por diversos instrumentistas e cantores, vindos de todos os quadrantes da vida musical). Durante muitos anos, esse movimento foi encarado como uma resposta ao bombardeamento de Guernica, em 1937; mais tarde, a viúva de Joaquín Rodrigo viria a explicar que pretendia eternizar a memória do primeiro filho do casal, nado-morto.
Curiosamente, o grande guitarrista espanhol Andrés Segovia nunca interpretou «Concierto de Aranjuez». Ao invés, entrelaçou com Joaquín Rodrigo o seu próprio trabalho na guitarra e orquestra. O resultado foi «Fantasía Para Un Gentilhombre», que Segovia estreou em São Francisco, em 1958. Ao contrário do concerto, nos seus quatro movimentos, «Fantasia» parte de melodias existentes: as danças do compositor espanhol do século XVII, Gaspar Sanz. A tonalidade surge elegante e perfeitamente relacionada com o estilo aristocrático de Andrés Segovia e, apesar de a obra nunca ter atingido o nível de popularidade de «Concierto de Aranjuez», está, seguramente, muito perto. Milo Karadagli? só recentemente a acrescentou ao seu repertório mas já nutre por ela um tremendo carinho, levando-o mesmo a afirmar que «possui um espírito magnífico e, em termos de sonoridade e textura, cristaliza-se ainda melhor nos dedos do que Aranjuez».
Joaquín Rodrigo e Manuel de Falla surgem reunidos naquela que é, provavelmente, a mais complexa peça deste álbum, «Invocación y Danza», de Rodrigo, que é, ela própria, uma homenagem a Falla, como o próprio subtítulo indica. Em 1961, valeu a Joaquín Rodrigo o primeiro prémio do Coupe Internationale de Guitare, uma competição organizada por uma rádio francesa (a França, mais uma vez, a assumir um importante papel no rumo da música espanhola). Para Milo Karadagli?, é uma obra que condensa muitos dos elementos que estão abraçados na sua imaginação: a profundidade do som de Andrés Segovia, a precisão exacta de John Williams e a cor única de Julian Bream. Além disso, também permite uma conclusão para uma viagem musical que começou com Manuel de Falla, continuou com Joaquín Rodrigo e, agora, encontra os dois homens a entreolharem-se, como se de um só se tratasse, sem dúvida satisfeitos com o papel que desempenharam na assumpção da guitarra como um dos mais importantes instrumentos da música clássica do século XX.